REFLEXÃO: Quando a dor não viraliza, o silêncio por Daniel e a comoção pelo Vaqueirinho sob o olhar de Freud.
A repercussão da morte de Daniel, encontrado sem vida em um quarto simples no bairro José Américo, contrasta de forma evidente com a comoção causada pela morte do jovem conhecido como Vaqueirinho, vítima de ataque de uma leoa em João Pessoa. As redes sociais reagiram de maneira completamente distinta, expressando um movimento coletivo que reflete mais o inconsciente social do que o valor humano de cada vida. Essa diferença pode ser interpretada a partir de uma leitura freudiana sobre o investimento afetivo e a formação de vínculos simbólicos.
Daniel vivia à margem. Durante grande parte da sua trajetória, sequer possuía documentos, dormia em locais públicos, carregava um histórico de abandono afetivo e de dependência alcoólica que acabou o afastando da família e da vida social. Ele representa aquilo que Freud classificaria como sujeito desinvestido pelo coletivo. Não havia nele, aos olhos sociais, um ideal a ser preservado, admirado ou defendido. Como fruto desse esvaziamento simbólico, sua morte não rompe uma narrativa pública; encerra apenas um ciclo silencioso. No plano psíquico, não há luto coletivo, porque, segundo Freud, não se sofre pela perda daquilo que não se investiu afetivamente.
De forma oposta, a morte do Vaqueirinho mobilizou as redes com intensidade. Jovem, publicamente conhecido, vítima de um ataque violento e incomum dentro de um zoológico, ele passou a ocupar o lugar de ideal projetado: a imagem do vaqueiro popular, símbolo regional, figura que carrega rusticidade, força e identidade cultural. A situação extrema cria impacto visual e narrativo, e o público reage porque a tragédia representa ruptura com um ideal. Freud explica que o luto só se estabelece quando o objeto afetivo cai; por isso há dor pública quando uma imagem idealizada é desfeita.
Há ainda outro aspecto freudiano decisivo. Enquanto Daniel expressa a dor gradual, lenta, concreta da deterioração emocional, o Vaqueirinho simboliza o choque, o inesperado e o extraordinário. Freud observa que aquilo que confronta a fragilidade psíquica — como o alcoolismo, o abandono e a perda de vínculos — tende a ser recalcado. A sociedade, portanto, rejeita olhar para Daniel porque ele espelha a possibilidade da queda de qualquer um. O sofrimento do outro, quando é cotidiano e real, provoca repulsa e medo; quando é espetacularizado, converte-se em catarse coletiva.
Assim, a diferença de reação não é moral; é psíquica. A morte de Daniel não ameaçou um ideal coletivo, não construiu narrativa pública, não produziu imagens que mobilizassem o consumo emocional das redes. Sua ausência reforça o esquecimento que já existia em vida. Já o Vaqueirinho se encaixa na lógica narcisista descrita por Freud, segundo a qual o grupo se identifica com aquilo que representa projeção, vigor e símbolo. Seu desaparecimento causa luto compartilhado porque afeta a memória idealizada.
De maneira dolorosa, Freud nos ajuda a compreender que a diferença de comoção não está na dignidade das vidas perdidas, mas no grau de investimento simbólico que a sociedade decide fazer. Daniel deixa uma ausência silenciosa; o Vaqueirinho deixa uma ferida pública. A psicanálise diria que não foi a morte que revelou essa diferença — foi a forma como escolhemos enxergar quem está vivo.
Redação Jornal Mariense Sim Senhor
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